Surucucus e conservação: além do medo, a importância das florestas e dos animais mal interpretados.

Lendas, mitologias e superstições moldaram muitos preconceitos sobre animais peçonhentos ou que não pertencem à chamada “fofofauna”. Com o avanço do desmatamento e das mudanças climáticas, discutir a importância desses animais, muitas vezes vistos como perigosos ou esteticamente desagradáveis, torna-se essencial. Entre eles, as serpentes ocupam lugar central: admiradas por alguns e temidas por muitos, frequentemente são mortas injustamente e cercadas de mitos que ampliam o medo da população.

A pergunta “se são perigosos, por que não desejar seu desaparecimento?” é comum, mas ignora o papel ecológico fundamental desses animais. Mais do que portadores de venenos, muitas espécies são bioindicadoras, sinalizando a saúde dos ecossistemas, verdadeiros “guardiões” das florestas brasileiras. Frases como “aranhas não servem para nada”, “cobra é símbolo do mal” ou “cobra corre atrás de gente” são exemplos de desinformação. Na verdade, esses animais trazem mais benefícios do que prejuízos. Aranhas controlam populações de insetos que afetam a saúde humana, como o barbeiro (vetor da doença de Chagas) e o Aedes aegypti (dengue). Da mesma forma, serpentes regulam populações de roedores, que podem destruir plantações e transmitir doenças como a leptospirose, muitas vezes mais grave que uma picada de cobra. Outro ponto importante é o valor farmacológico desses animais. O captopril, remédio amplamente usado contra a hipertensão, foi desenvolvido a partir do veneno da jararaca. Mais recentemente, pesquisas mostraram que componentes do veneno da cascavel têm potencial no combate ao câncer de mama. Esses medicamentos não utilizam o veneno bruto, mas moléculas isoladas e modificadas por processos laboratoriais. Assim, serpentes e aranhas salvam muito mais vidas do que tiram, reforçando a necessidade de preservá-las. Entre as serpentes mais emblemáticas está a Surucucu, a maior serpente peçonhenta das Américas.

Vive em florestas densas da América do Sul, especialmente na Amazônia e na Mata Atlântica, e é conhecida como Surucucu-Pico-de-Jaca devido ao padrão de suas escamas. Pode chegar a 3,5 metros, alimenta-se de roedores e deposita ovos, sendo uma das poucas serpentes com cuidado parental. Apesar da fama, é responsável por apenas cerca de 3% dos acidentes ofídicos, pois habita áreas preservadas e evita contato com humanos. Ao contrário do senso comum, surucucus (Lachesis spp.) não são agressivas: só picam quando ameaçadas ou surpreendidas. As jararacas (Bothrops spp.) são as principais responsáveis por acidentes porque se adaptaram bem a ambientes modificados pelo ser humano, ampliando o contato com a população. As surucucus, por outro lado, não toleram perturbações e se refugiam em florestas intactas, ambientes cada vez mais raros devido ao avanço da agropecuária, do desmatamento e das mudanças climáticas. Até o início dos anos 2000, acreditava-se que havia apenas uma espécie de surucucu (Lachesis muta), dividida em duas subespécies. Porém, um estudo de 2024 revelou que são duas espécies distintas: Lachesis muta, na Amazônia, e Lachesis rhombeata, na Mata Atlântica. Essa revisão taxonômica tem grande impacto para a conservação. A L. rhombeata possui diversidade genética mais baixa, área de ocorrência menor e maior vulnerabilidade. A distribuição da L. rhombeata é fortemente fragmentada devido ao desmatamento histórico da Mata Atlântica. As populações isoladas têm menos troca genética, aumentando o risco de extinções locais. Proteger animais peçonhentos como a surucucu é essencial, não apenas por sua importância ecológica, mas também pelo potencial medicinal que carregam. Cuidar desses animais é, em última análise, cuidar do próprio ambiente do qual fazemos parte.

Amanda Vitorino de Oliveira é graduanda em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Viçosa, Campus Rio Paranaíba.

Lucas de Oliveira Ribeiro é graduando em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Viçosa, Campus Rio Paranaíba.

Luiz Guilherme Pereira Pimentel é mestrando em Zoologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Referências:

Hamdan, B., Bonatto, S. L., Rödder, D., Seixas, V. C., C. Santos, R. M. F., Santana, D. J., … Zingali, R. B. (2024). When a name changes everything: taxonomy and conservation of the Atlantic bushmaster (Lachesis Daudin, 1803) (Serpentes: Viperidae: Crotalinae). Systematics and Biodiversity, 22(1).

CAPIXABA, Herpeto. A IMPORTÂNCIA DOS ANIMAIS PEÇONHENTOS. HERPETO CAPIXABA, 20 abr. 2023.