Rúbia Santos Fonseca
Em ecologia denominamos comunidade como o conjunto de espécies que interagem entre si em uma área. Cada espécie apresenta um número diferente de indivíduos, por isso na comunidade algumas espécies são raras (com poucos indivíduos) e outras comuns (muitos indivíduos). A presença das espécies em um local, assim como a sua abundância, está relacionada a diversas características essenciais para sua sobrevivência, tais como precipitação, temperatura e recursos do ambiente. Muitas espécies apresentam distribuição restrita a uma pequena região, enquanto outras ocorrem sobre boa parte da superfície terrestre. Esses diferentes padrões de distribuição são relacionados às exigências de cada espécie para a sua sobrevivência, que é o nicho dessa espécie; e quanto mais exigente for a espécie, menos lugares aptos à ocupação ela terá.
Em função da relação das espécies com o clima, mudanças climáticas podem tornar o ambiente em que uma espécie ocorre inapropriado para a sua permanência, e a espécie pode ser extinta ou pode buscar outros locais com condições ideais para a sua sobre vivência. Esse fenômeno, denominado migração, já ocorreu muitas vezes durante o tempo em que a vida é registrada na Terra, nos períodos glaciais e interglaciais. Nos períodos glaciais as espécies das regiões temperadas deslocaram-se para a zona tropical, enquanto as espécies típicas da zona tropical ficaram restritas a pequenos refúgios climáticos. Nos períodos interglaciais, as espécies das regiões
temperadas retornaram para as suas áreas de origem, enquanto os refúgios tropicais se expandiram por toda a zona tropical, formando o padrão de vegetação e de comunidades semelhante ao atual. Alguns exemplos de espécies que migraram para a região tropical, fugindo do resfriamento no período glacial, foram os canídeos (os ancestrais do nosso lobo guará) e felídeos (ancestrais das nossas onças). Essas alterações climáticas ocorreram em períodos longos, por isso, apesar de muitas espécies se extinguirem ou especiarem, muitas outras foram capazes de migrar para ambientes favoráveis e assim sobreviver.
Estamos em um período interglacial, caracterizado por um aumento na temperatura global. No entanto, atividades antrópicas têm promovido a elevação da temperatura e alterações na precipitação em uma velocidade maior que a de evolução de muitas espécies, o que acarreta em perdas na biodiversidade. Os anfíbios são animais especialmente sensíveis a alterações climáticas,
principalmente na intensidade e frequência da precipitação. Não por acaso, o primeiro registro comprovado de extinção pelas atuais mudanças climáticas globais é de um anfíbio. O sapo dourado (Bufo periglenes), restrito a uma floresta nebulosa na Costa Rica, foi declarado como extinto em 1989, apenas 29 anos após ser descoberto. Essa extinção foi atribuída a alterações climáticas ocorridas em 1986 e 1987, que produziram um clima anormalmente quente e seco. Nesse período,
diversos outros anfíbios tiveram suas populações drasticamente reduzidas.
A sobrevivência dos jacarés e tartarugas também é ameaçada pelas mudanças climáticas. Nessas espécies a temperatura do ninho determina o sexo dos filhotes e peque nas alterações na temperatura (<2°C) podem modificar drasticamente o número de machos e fêmeas nascidos. Um estudo desenvolvido com uma tartaruga de água doce norte americana (Chrysemys picta) demonstrou que um aumento na temperatura de 4°C eliminaria a produção de machos, o que promoveria a extinção dessa espécie após a última geração de fêmeas.
As mudanças climáticas também afetam as interações ecológicas. O comportamento fenológico das plantas (época e intensidade do brotamento, floração e frutificação) é relacionado à temperatura e precipitação. Por isso, alterações no clima podem promover mudanças no período e na quantidade de brotos, flores e frutos produzidos. Alterações no brotamento podem afetar espécies de herbívoros, além de alterar as taxas locais de captação de CO2. Mas as variações na floração e frutificação são mais preocupantes para a sobrevivência das espécies de polinizadores e dispersores, pois essas interações são mais específicas; há tipos de flores e de frutos para cada grupo de polinizadores ou dispersores. Por isso, para a manutenção das populações de polinizadores e dispersores em uma comunidade é necessário que flores e frutos sejam produzidos durante todo o ano. Alterações no comportamento fenológico de muitas plantas já foram observadas; em alguns ambientes foram registrados períodos de incoerência da floração com a presença dos polinizadores, fato que influencia diretamente na sobrevivência dessa planta, do polinizador e dos dispersores. Quando lembramos que as comunidades são regidas por redes de interações e que todas as espécies estão interligadas, o problema toma proporções muito maiores.
As mudanças climáticas não influenciam apenas espécies, podem influenciar todo um bioma. Elevações na temperatura e diminuições na precipitação têm tornado diversos ambientes mais áridos, promovendo inclusive a desertificação de muitas áreas no nordeste do Brasil. Devido aos indiscutíveis efeitos sobre os ecossistemas naturais, modelos matemáticos baseados no nicho foram desenvolvidos e usados para prever a distribuição das espécies e comunidades nos próximos anos. Esses modelos demonstram quadros muitas vezes preocupantes, com diversas espécies diminuindo a sua área de ocorrência, transformando grandes áreas de ocorrências contínuas em áreas pequenas e disjuntas. Outras espécies, entretanto, podem aumentar muito a sua distribuição, como é o caso de Lutzomyia whitmani, um mosquito vetor da leishmaniose. Se isso ocorrer, a leishmaniose pode expandir para diversas áreas anteriormente livres dessa zoonose. Em relação aos efeitos sobre os biomas, estudos propõem a expansão do cerrado para áreas sul do Brasil que vão se tornar inóspitas para a floresta atlântica, o que pode afetar a sobrevivência das florestas de araucária.
As mudanças climáticas globais não atuam sozinhas na redução da biodiversidade, outras alterações promovidas pelo homem, como destruição e fragmentação de habitats e invasão biológica, também tem grande influência. Nessa realidade, a criação de novas áreas de preservação, de corredores ecológicos, além do estímulo à redução das emissões de CO2 e a programas de sequestro de carbono são ações determinantes para a preservação de muitas espécies.
Rúbia Santos Fonseca é bióloga, mestre e doutora em Botânica pela UFV. Desenvolve pesquisas na área de fenologia e biologia reprodutiva de plantas nativas.
Como citar esse documento:
Fonseca, R.S. (2013). O que acontece com as espécies quando o clima muda? Folha biológica 4 (Edição especial 2-3): 2