Ana Lúcia Tourinho
O que é um opilião?
Essa questão é bem frequente, mesmo entre alunos de classes de pós-graduação das áreas biológicas e relacionadas. Esses aracnídeos muito abundantes e distribuídos no mundo todo são pouco conhecidos. Possuem hábitos crípticos e noturnos, atingem seu pico de diversidade em regiões tropicais da América do Sul, principalmente o Brasil. Entretanto, diversas espécies brasileiras desses ocultos animais correm o risco de desaparecer do planeta antes mesmo de serem conhecidas.
Os opiliões são aracnídeos.
Sim, eles parecem aranhas, mas não são. Assim como todas as aranhas, possuem o corpo dividido em dois segmentos, o anterior se chama prosomo ou cefalotórax, e o segundo se chama opistosomo ou abdômen. Também compartilham quatro pares de pernas, um par de pedipalpos (estruturas que parecem pernas, mas são usadas para manusear objetos), e um par de quelíceras (parte do aparelho bucal dos aracnídeos). Porém eles não tecem teias porque não têm fiandeiras (estruturas responsáveis pela emissão dos fios de seda). Além disso, visualmente as duas regiões do corpo dos opiliões não estão separadas por uma cintura como ocorre com o corpo das aranhas. Ao longo de sua evolução, cinco dos segmentos da região posterior do corpo do animal, o opistosomo, se fundiram à região anterior, o prosomo, formando uma carapaça externa inteiriça chamada de escudo dorsal. Por este motivo a divisão de seu corpo em duas regiões, só pode ser visualmente notada internamente. Diferentemente das aranhas, que possuem muitos olhos (de quatro a oito olhos), eles têm apenas um par de olhos medianos que estão geralmente posicionados em uma pequena elevação localizada na parte anterior de seu corpo, o cômoro ocular. Os olhos laterais presentes nas aranhas e escorpiões estão ausentes nos opiliões. Os opiliões possuem um par de glândulas laterais (as glândulas odoríferas), também na parte anterior do corpo, e quando incomodados ou ameaçados liberam um cheiro no ambiente. Assim, é fácil saber se há um opilião por perto se conhecemos esse odor. Mas não é só isso, há ainda uma outra característica interessante que torna os opiliões diferentes dos outros aracnídeos: eles têm pênis. É isso mesmo! Eles são os únicos do grupo de aracnídeos em que os machos possuem um pênis para transferência direta de espermatozóides. Inofensivos aos humanos, os opiliões geralmente se escondem porque precisam de ambientes úmidos e com temperatura elevada para sobreviver. Isso acontece por que os opiliões perdem água com muita facilidade, e se forem expostos por tempo prolongado a ambientes secos e muito quentes não resistem e morrem. Por isso é mais fácil encontra-los à noite, quando estão se alimentando, locomovendo e procurando um parceiro para reprodução. É também por este motivo que os locais prediletos dos opiliões são cavernas, frestas de árvores, entre pedras e nos paredões rochosos, debaixo das pedras, das folhas e troncos caídos no chão. Também são encontrados atrás e nas concavidades das diferentes folhas de plantas dos sub-bosques florestais e até mesmo enterrados, ou atrás das cascas das árvores.
Esquema anatômico de um opilião
Macho da espécie Stygnus nogueirai descrita por Ricardo Pinto da Rocha e Ana Lúcia Tourinho em 2012. A descrição desta espécie foi publicada junto com outras 9 novas espécies na revista científica Zootaxa.
Eles podem caçar insetos e outros aracnídeos, mas em geral são generalistas, isso quer dizer que se alimentam dos recursos que estiverem disponíveis no momento, e são frequentemente observados se alimentando de matéria em decomposição. Uma grande proporção do que é produzido em florestas é processado pelos organismos detritívoros (aqueles que se alimentam de detritos), como muitas das espécies de opiliões, e muitas ordens de insetos. Portanto esses animais contribuem ativamente para a ciclagem dos nutrientes através da decomposição da matéria orgânica acumulada na liteira (camada de folhas mortas acima do solo), desempenhando um importante papel no cenário ecológico.
Diversidade e endemismo
Outra característica importante dos opiliões é o endemismo acentuado apresentado por quase todas as espécies. Espécies endêmicas são aquelas que estão distribuídas exclusivamente em um determinado local. Os níveis de universalidade de endemismo podem variar. Existem grupos endêmicos de pequenas manchas florestais, serras e parques, até os endêmicos de grandezas categóricas mais amplas como os biomas, continentes, regiões zoogeográficas e eco regiões. Dados de pesquisas apontam os opiliões da Mata Atlântica como os animais com níveis de endemismos mais altos já registrados (97,8%). Apesar do endemismo acentuado, opiliões estão espalhados pelo mundo todo. A diversidade de espécies de opiliões é alta, existem cerca de 6.300 espécies conhecidas, mas a diversidade máxima é atingida na região Neotropical, e cerca de 900 das espécies conhecidas são endêmicas de biomas brasileiros, ou seja, são exclusivas destes biomas. Mas este número está subestimado, os opiliões são pouco conhecidos até mesmo pela ciência. Muitas espécies novas são encontradas em áreas reconhecidas como regiões de maior diversidade de organismos do mundo, como a Amazônia e a Mata Atlântica. Porém o número de espécies novas encontradas na Amazônia é surpreendentemente alto. Isto ocorre principalmente porque a fauna de opiliões da Mata Atlântica tem recebido mais atenção dos pesquisadores nos últimos 50 anos, já a Amazônia, o Cerrado são consideradas as regiões com a fauna de opiliões mais pobremente conhecida do país. Mesmo assim, na Mata Atlântica o número de espécies novas encontradas ainda é considerado alto, nos últimos cinco anos pelo menos uma espécie nova, endêmica da região, foi descrita por ano. O percentual de espécies novas encontradas por localidade amostral na Amazônia pode chegar a 50%, ou mais, dependendo da área amostrada. Em regiões mais distantes e de difícil acesso, os números por coleta chegam a 90%. Nas grandes cidades, por exemplo, Manaus, no estado do Amazonas, e Belém, no estado do Pará, receberam mais coletas nos últimos 50 anos, portanto o número de espécies conhecidas nesses locais é maior. No entanto, coletas recentes realizadas em fragmentos urbanos da floresta da Universidade Federal do Amazonas, na cidade de Manaus, atingem um percentual de 20% a 30% de espécies ainda desconhecidas para a ciência. Cerca de 70% do território da Amazônia brasileira nunca recebeu uma visita científica seguida de coleta de opiliões. Espantosamente, essas localidades não incluem somente locais de difícil acesso ou muito distantes das grandes metrópoles amazônicas. Um bom exemplo é o trabalho recentemente realizado pela mestre em ciências biológicas Larissa de Souza Lança na Fazenda Experimental da UFAM. A fazenda está localizada no km 38 da rodovia BR-174, e conta com uma grade de 24 km2, sendo 59 km de trilhas e 41 parcelas implementadas pelo Programa de Pesquisas em Biodiversidade. Lá foram coletadas 26 espécies de opiliões, sendo que 65% delas são prováveis espécies ainda não descritas, ou seja, novas espécies para a ciência.
Ameaça eminente
Existem os dois lados nesta história de endemismo. Por um lado, as informações de espécies com áreas de distribuição extremamente restritas, juntamente a informações obtidas através de estudos de sistemática e filogenética (classificação e estudo das relações de parentesco dos organismos), fornecem um entendimento maior dos eventos que alteraram o ambiente e acabaram por isolar as faunas levando à especiação. Portanto, estudar os padrões biogeográficos é de extrema importância para o resgate e melhor entendimento histórico dos eventos ocorridos no planeta, e para o estabelecimento e elaboração de políticas de conservação ambientais. Mas por outro lado, espécies com áreas de distribuições muito restritas se tornam muito vulneráveis e passíveis de extinção. Infelizmente a expansão progressiva do desmatamento das áreas florestais é uma realidade, também representando uma ameaça para muitas espécies de opiliões. Espécies desconhecidas, que não estão presentes em nenhuma coleção científica do mundo, podem desaparecer antes mesmo que cheguem a ser descobertas pelos cientistas. Na região Amazônica brasileira temos o exemplo das florestas ao longo da BR-319. A rodovia que unia Manaus a Porto Velho foi construída na década de 70, durante o período da ditadura militar. Em 1988 ela ficou intransitável em consequência de sua degradação crítica. O governo estadual do Amazonas, com o apoio Ministro dos Transportes e do presidente da época, Luís Inácio Lula da Silva, decidiram retomar às pressas, no meio do ano de 2005, o polêmico projeto de reconstrução da rodovia. O asfaltamento da BR-319 foi então iniciado na época sem um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA), como requerem as leis federais de licenciamento ambiental, apesar da tentativa, sem êxito, da ministra do meio ambiente da época, Marina Silva, de embargar a obra até que tais medidas legais fossem atendidas.
Interflúvio Madeira-Purus no estado do Amazonas, na foto a floresta Amazônica cortada pela estrada BR-319. Crédito da Foto: José Luis Purri – PPBIO http://ppbio.inpa.gov.br/
Informações sobre a obra apressada e suas consequências socioeconômicas e ambientais foram bastante discutidas em jornais locais e publicações científicas de Philip Fearnside (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), mas hoje não se toca mais no assunto. A área em questão está situada ao sul do rio Amazonas, limitada pelos rios Amazonas, Madeira e Purus, e incluída na área classificada como um dos grandes centros de endemismo Amazônico pelo historiador natural Alfred Russel Wallace, e posteriormente confirmada por diversos outros autores importantes, como o alemão Jürgen Haffer, autor da teoria dos refúgios amazônicos. Além da fauna composta por muitas espécies novas o local possui índices elevados de riqueza de espécies, e importantes informações acerca do endemismo de aracnídeos amazônicos, de mamíferos e aves inventariados nos últimos cinco anos pelas equipes de grandes programas institucionais de biodiversidade como o Programa de Pesquisas em Biodiversidade/PPBio e Rede GEOMA. Nas áreas próximas aos Km 81 e 83 da rodovia encontramos a espécie Fissiphallius tucupi, segunda espécie de opilião da família Fissiphalliidae da Amazônia descrita em 2006 por Ana Lúcia Tourinho e Abel Pérez, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Entre as cidades de Humaitá e Careiro Castanho não existem registros de opiliões além da nova espécie F. tucupi. Particularmente, espécies dos dois grupos citados possuem grande importância para a compreensão tanto da história evolutiva dos opiliões como biogeográfica do grupo na região Amazônica. Infelizmente as áreas do km 81 foram loteadas, as linhas que demarcavam as parcelas e transectos permanentes utilizados para amostragem em nosso inventário já haviam sido incluídas nas divisões do loteamento seis meses após nossa coleta, ainda no ano de 2006. O programa de aceleramento do desenvolvimento nacional (PAC) vem realizando inúmeras obras com o objetivo de alavancar o desenvolvimento do país, através de construções que objetivam, entre outros, garantir e expandir o suprimento de energia e a capacidade de transporte no país. Além dos projetos já em andamento como as polêmicas envolvendo a pavimentação da BR-319 e a construção da hidrelétrica de Belo Monte no Rio Xingú, há planejamento de construção e pavimentação de inúmeras outras estradas e hidrelétricas, bem como outros empreendimentos que geram um impacto negativo sobre a biota. A criação de reservas na área de entorno dessas obras seria uma alternativa tanto para a persistência de algumas dessas espécies, quanto para a contenção do desmatamento. Na verdade existe uma legislação que regula todo esse processo, e para áreas desmatadas ou impactadas por empreendimentos desse porte há necessidade de estabelecimento de unidades de conservação de acordo com a escala da área impactada. Entretanto, nem sempre as medidas mais adequadas são aplicadas e escolhidas para cada empreendimento. As decisões requerem pareceres velozes, seguidas de tomadas de decisões mais velozes ainda em função da pressa política e dos montantes de recursos envolvidos. Existem discussões para implementação de unidades de conservação, porém, estas deixariam de fora áreas importantes, que nunca foram inventariadas por pesquisadores, e, portanto todo o seu potencial científico em termos de biodiversidade é bastante desconhecido até mesmo pelos especialistas. Ponderações científicas realizadas por instituições científicas e governamentais competentes, sempre envolvem equipes especializadas tanto na avaliação dos componentes biológicos como os sociais das regiões, mas para executar análises desse cunho e prever medidas mitigatórias geralmente é necessário mais tempo, tempo esse que geralmente os responsáveis não estão dispostos a dar. Caso as unidades de conservação prometidas sejam concretizadas sem que haja previamente um planejamento por meio de consulta pública, inventários científicos e resultados de EIA/ RIMA, dificilmente estas priorizarão de maneira adequada os componentes biológicos e geográficos locais e a população amazônica. As consultas públicas não são bem divulgadas, e nem sempre todos os aspectos e impactos multifacetados são de fato apresentados nessas ocasiões para a população. Na verdade, este deveria ser um evento onde a população de fato se engajasse, e a mesma também deveria ter uma alfabetização científica maior para que pudesse estar mais consciente de seus interesses nesse caso. Esta última deveria ser colocada a par não apenas das vantagens, mas também das desvantagens, muitas vezes irreversíveis, de todo e qualquer planejamento desenvolvimentista para que pudesse exigir medidas mitigatórias adequadas. Inúmeras outras regiões da Amazônia, e do restante do Brasil, jamais foram amostradas por especialistas e se encontram nesta mesma situação, a maioria delas irá desaparecer antes mesmo que alguns representantes importantes e desconhecidos sejam resgatados e depositados em coleções para pesquisas futuras. Tal informação, uma vez perdida, estará perdida para sempre.
Ana Lúcia Tourinho é bióloga, mestre em Zoologia e doutora em Ecologia. Atua no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, nos Programas de Pós-Graduação em Entomologia e em Ecologia. É curadora assistente da Coleção Aracnológica do INPA e especialista em Aracnídeos, principalmente das ordens Opiliones, Ricinulei e Araneae
Como citar esse documento:
Tourinho, A.L. (2013). Desconhecidos e Ameaçados. Folha biológica 4 (1): 2-3