Flávia Fróes de Motta Budant
Imagine você que seu professor de ciências (biologia, física ou química) chega na sala com um novo texto sobre a matéria. Um texto que fala de animais. Que também fala a respeito da óptica. E também sobre átomos. Em que formato ele viria? Provavelmente em prosa, cheio de nomes gigantes e, dependendo da bondade do autor, com algumas figuras ilustrativas. Bom, talvez não fosse bem assim…
Ciência em versos
Há cerca de dois mil e cem anos vivia em Roma um sujeito chamado Lucrécio, sobre o qual sabemos pouco. O mais seguro que temos é a sua obra: um livro chamado De Rerum Natura – Sobre a natureza das coisas. Lucrécio era seguidor de Epicuro, um filósofo grego que pregava a busca da felicidade através da dissolução dos medos, como o medo da morte. São eles que nos prendem, que impedem que vivamos bem. Para os superarmos, precisamos conhecer o universo no qual estamos imersos, do qual somos uma pequena parte. Precisamos entender a natureza das coisas. Lucrécio, que, como bom romano, pagava tributo à cultura helenística (da Grécia Antiga), decidiu fazer uma obra para divulgar essas ideias filosóficas. E a fez – em versos. À época, o verso pertencia não só ao conteúdo lírico, mas também ao épico e ao didático, gênero ao qual pertence o De Rerum Natura. Ele contém quase oito mil versos, separados em seis livros (ou cantos, divisões como capítulos), que tangem várias áreas do conhecimento: física, química, biologia, geografia, filosofia e – pasme – até teologia!
Mesmo sem vê-lo, ele deveria existir
Os dois primeiros livros expõem a física epicurista, herdeira de Demócrito, o inventor da palavra átomo (indivisível, em grego). O átomo é reconhecido como menor parte da matéria, que não pode mais ser quebrada, e constituinte de tudo que existe: são as semina rerum, semente das coisas. Lucrécio deriva suas conclusões empiricamente, ou seja, por meio dos sentidos. Tudo é feito de átomos e de vazio, entrelaçados de maneira diferente, o que permite a diversidade assombrosa de seres e objetos que constituem nosso planeta, e quem sabe até outros mundos.
Fisionomia atribuída a Lucrécio de Roma.
Vida e morte: um ciclo infinito
O livro III é sobre a natureza da alma e nele Lucrécio empreende uma refutação aos outros filósofos, como Aristóteles, a respeito da imortalidade da alma. Para o epicurista, a alma existe, mas é mortal, como todo o resto do corpo. Ela é material, é feita de átomos, e, por isso, também é suscetível ao perecimento. Assim, não devemos temer a morte: ela faz parte da Natureza e de nós mesmos.
Paixão x razão
O livro IV explica as imagens, as visões que temos das coisas. São como películas que se descolam da superfície das coisas e atingem nossos olhos. Lucrécio escreve, e de maneira bastante poética, também sobre as paixões humanas e como devemos resistir a elas, afinal, nos deixam sem juízo e sem pensar racionalmente (parece que não mudou muito).
Origens: a Terra dando seu testemunho
Os livros V e VI tratam da origem do nosso planeta, de como os seres se desenvolveram, e do funcionamento dos fenômenos naturais – trovões, terremotos, vulcões e até o ímã, com seu misterioso magnetismo.
No fim, o encantamento é o que conta
Bom, e falando sobre tudo isso, Lucrécio acertou? Quanto ao conteúdo científico, pode-se dizer que sim e que não. Apesar de não ter microscópios e telescópios, muita coisa foi inferida corretamente pelo raciocínio e pela observação. O que deve ser reconhecido no poema, porém, não é tanto o que foi confirmado pela ciência moderna, mas a beleza com que Lucrécio fala e explica os fenômenos. Sim, é possível fazer um poema sobre ciência. Desvendar o mundo em que vivemos significa apreciá-lo. Significa apreender e aprender sobre a natureza das coisas, de rerum natura.
Flávia Fróes de Motta Budant é estudante de Graduação em Letras Português – Latim, na Universidade Federal do Paraná, com ênfase em estudos da poesia latina.
Como citar esse documento:
Budant, F.F.M. (2013). Um poema sobre ciência. Folha biológica 4 (1): 1