Aves Rancorosas

Os animais estão em constante aprendizado, adquirindo conhecimento por meio da observação e da associação com experiências vividas. Animais de estimação, por exemplo, reconhecem hábitos, rostos e sons específicos, como seus nomes ou o barulho da embalagem de ração. Entretanto, essa capacidade de memorização vai além dos animais domésticos, sendo também fundamental para a sobrevivência de espécies selvagens. Animais como pombos e corvos, por exemplo, são capazes de lembrar locais com alimento, identificar membros do próprio grupo e até reconhecer situações de perigo. Esses animais, que vivem próximos aos centros urbanos, chamados de sinantrópicos, sobrevivem no ambiente humano utilizando pistas acústicas, visuais e olfativas. Assim, a memória se torna um mecanismo vital para a adaptação e a convivência com o meio.

Os corvos-americanos (Corvus brachyrhynchos) são aves sociais e inteligentes, com uma cognição considerada avançada. Eles aprendem com rapidez e precisão, sendo capazes de reconhecer e lembrar rostos humanos por longos períodos. Uma pesquisa realizada em 2010 demonstrou que os corvos não apenas reconhecem rostos, mas também conseguem diferenciá-los entre si, mesmo entre grupos de pessoas. Isso significa que, além de guardarem a lembrança de uma experiência negativa, eles distinguem detalhes faciais. Os corvos podem identificar a face de uma pessoa considerada perigosa e manter essa memória por cerca de 2 a 7 anos.

Durante o estudo, os corvos reconheceram e repreenderam (fizeram alarde contra) pessoas que usavam máscaras associadas a experiências negativas, mesmo quando estavam vestidas de forma diferente. Isso indica que eles direcionam maior atenção ao rosto humano do que aos trajes e acessórios utilizados. Os pesquisadores também observaram que os corvos podem ser influenciados por outros corvos que estão “reclamando”, formando grupos de alarme. Eles também reconhecem rostos em diferentes ângulos e até mesmo de cabeça para baixo.

Essa habilidade cognitiva é fundamental para sua sobrevivência, especialmente em ambientes urbanos, onde precisam distinguir entre ameaças e pessoas inofensivas. Além disso, é sugerido que as reações de medo e reconhecimento apresentadas pelos corvos possuam bases neurológicas semelhantes às dos mamíferos, envolvendo estruturas cerebrais como a amígdala e o hipocampo, áreas ligadas à memória e à resposta emocional. É possível que essa habilidade tenha desempenhado um papel importante na relação entre corvos e seres humanos ao longo da história. Em diversas culturas, essas aves estão presentes em mitos, lendas e símbolos, muitas vezes associadas à inteligência, aos presságios ou ao companheirismo. À medida que a ciência avança na investigação de ambientes urbanos, rurais e naturais, torna-se cada vez mais evidente que as interações constantes com os humanos estão levando certos animais, como os corvos, a desenvolver capacidades cognitivas refinadas, incluindo o reconhecimento individual de pessoas, uma adaptação que pode ser essencial para sua sobrevivência e sucesso em ambientes dominados por nossa espécie.

Imagem: Espécie Corvus brachyrhynchos.

Referência:

MARZLUFF, John M. et al. Lasting recognition of threatening people by wild American crows. Animal Behaviour, v. 79, n. 3, p. 699-707, 2010.

Laiena Luz Bassam Amadeu é doutoranda em Biologia Animal pela Universidade Federal de Viçosa.

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